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Distonia do Músico

Atualizado: 23 de out. de 2020



Epidemiologia

A distonia do músico afeta 1% a 2% de todos os músicos profissionais, embora amadores e estudantes também possam desenvolver distonia. É importante diferenciar a distonia do músico da distonia focal. Embora a distonia focal possa ser localizada em uma mão, a distonia do músico é específica do instrumento, sendo um movimento involuntário desencadeado por uma ação específica. Embora a distonia focal possa começar como uma tarefa específica, com o tempo ela se torna menos específica e prejudica outras atividades motoras do dia a dia.


Patofisiologia – Funcionamento Cerebral

Hoje sabemos que embora a distonia seja focal e de natureza quase que somente periférica, na realidade trata-se de um mal funcionamento do cérebro, e não dos nervos ou músculos relacionados aos movimentos involuntários. O treinamento intenso e ininterrupto exigidos pela profissão induz mudanças (i.e. plasticidade) nas regiões cerebrais que comandam o movimento de tocar o instrumento. Essas regiões conectam-se com outras partes do cérebro, estendendo-se até à medula espinhal, nervos e músculos envolvidos na efetuação precisa dos movimentos. Essa capacidade do cérebro em adaptar-se, desenvolver-se e proliferar conexões cerebrais para execução de funções onde a demanda é maior, em detrimento de outras áreas cerebrais envolvidas com tarefas de menor importância para aquela pessoa, é conhecida como plasticidade cerebral. Esta representa uma importante capacidade de adaptação e “personalização” do nosso cérebro. Quando a exigência é intensa em uma região, a ponto de recrutar outras regiões cerebrais para a tarefa específica, instala-se um desequilíbrio da função cerebral, levando ao controle deficitário de certos grupos musculares, no caso específico do pianista, justamente os dedos que recebem a maior carga forçada de extensão, como o anular e o mínimo, em geral da mão direita, mais requisitada nos solos.


Interessante neste fator é que crescem evidências científicas que as conexões entre os dois hemisférios cerebrais que são abundantes em não músicos, parecem já geneticamente mais escarças em famílias de músicos que sofrem da doença distônica. Esta relativa desconexão parece importante em instrumentos que requerem funcionamento mais intenso na independência hemisférica cerebral, como é o caso de instrumentos em que as mãos exercem funções distintas na execução de peças musicais, como é exemplo do pianista exercendo dedilhados completamente independentes entre as duas mãos, muitas vezes até em ritmos diferentes entre elas, requerendo não só uma independência motora, mas também intelectual. Por exemplo, algumas peças de difícil execução pedem que uma das mãos toquem em compasso ternário, enquanto a outra mão toca em compasso quaternário, portanto em ritmos totalmente independentes, requerendo “compartimentalização separada” dos hemisférios cerebrais durante a execução da peça musical. Este uso intenso das funções cerebrais conectivas leva a falha de integração dos comandos cerebrais em momentos mais delicados da execução. O treino obstinado do virtuoso leva ao recrutamento de outras áreas do cérebro no intuito de suprir a deficiência cerebral regional, afetando outras funções, como exemplo a fala. Existe uma verdadeira competição funcional na máquina computacional e de integração cerebral. Técnicas de imagens cerebrais não invasivas (Figura), bem como técnicas de estimulação cerebral externas, como a estimulação magnética transcutanea, conseguem desvendar esta peculiaridade nas vias cerebrais dos músicos. Sendo um problema central, isto é, intrínseco do cérebro, hoje desenvolvem-se técnicas de modulação intracerebrais para controlar os dedos desobedientes.


Predisposição

Embora as distonias de origem genética e de lesões cerebrais estejam bem estabelecidas, o relacionamento da distonia do músico com um fator genético ainda não está definida. Pode ocorrer a coexistência de fatores de risco não detectados quando associados à atividade incessante do treinamento musical, como por exemplo uma hipóxia, ou seja, falta de oxigênio prévia momentânea, clinicamente silenciosa devido a um parto mais laborioso, uma crise convulsiva na infância, ou mesmo a presença de distonia em membros da família. Nesses casos, o treinamento excessivo continuo que a atividade musical requer, aliada à deficiência intrínseca do cérebro do músico, aumentaria a chance do desenvolvimento de movimentos involuntários. Temos uma somação de fatores genéticos e não genéticos associados à prática de atividade repetitiva. O risco de desenvolver a distonia do músico é maior em quem toca instrumentos que requerem as maiores habilidades motoras finas, portanto estressando específicas regiões cerebrais. Os sintomas podem ser variáveis, tal como acontece com a distonia em geral (https://www.desallesegorgulho.com.br/post/distonia). São espasmos musculares involuntárias rápidas ou persistentes, consequência de contrações simultâneas de músculos antagonistas e/ou extravasamento para músculos estranhos aos movimentos repetitivos que iniciaram a distonia.


Desenvolvimento da Doença

Os primeiros sintomas são frequentemente percebidos como resultado de técnica inadequada, ou falta de preparação suficiente da específica peça musical. Frequentemente, o músico descreve o dedo como sendo desobediente, recusando-se a endireitar após flexionar ou mesmo flexionar espontaneamente. Inicialmente não se observa dor ou dormência. Tarefas corriqueiras como abrir vidros, amarrar sapatos, e até mesmo execução de peças fáceis ao piano não desencadeiam os movimentos anormais , dificultando até para o próprio músico entender o que está ocorrendo, se seria algo subjetivo, fruto de ansiedade ou somatização de preocupações e stress. Frequentemente taxadas como problemas psicológicos. Certas posições estendidas da mão, tocando uma série de oitavas, por exemplo, deflagram o problema ao pianista. A maioria dos músicos apresenta sintomas distônicos apenas ao tocar seus instrumentos. Em um estudo, 34% dos músicos tiveram dificuldades adicionais em outras atividades em que usam os mesmos grupos musculares, como escrever ou usar um teclado de computador.


A idade média de início da distonia do músico é aos trinta anos. O início é geralmente progressivo, às vezes começando com tensão muscular ou câimbra, embora possa ser repentino. Pode haver um evento precipitante, como uma lesão ou um episódio doloroso. Portanto, poderia parecer secundário a outro distúrbio neurológico, como compressão ou lesão de um nervo periférico ou lesão de um músculo e/ ou tendão. A lesão pode ser leve, mas pode ter levado o músico alterar sua técnica de como dedilhar. Tratando-se de uma dificuldade causada por doença intrínseca do cérebro, o neurologista é o especialista indicado para orientar o paciente dos tratamentos existentes, desde fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, relaxantes musculares e injeções de toxina botulínica. O neurologista deve ser especializado em desordens do movimento, trabalhando conjuntamente com um neurocirurgião especializado em doenças funcionais do cérebro.


Doenças Relacionadas

Estudos epidemiológicos mostram que 29% a 57% dos músicos relatam uma variedade de problemas médicos. Muitos são distúrbios comuns e minimamente incapacitantes, causando apenas queda de desempenho, como uma dificuldade articular que pode causar distúrbios de postura e especialmente dor. Entre 10% e 30% dos instrumentistas profissionais têm síndromes de compressão nervosa periférica, clinicamente evidentes ou detectadas apenas em estudos laboratoriais de condução nervosa (eletroneuromiografia). Essas anormalidade são atribuídas à flexão intensa e prolongada dos cotovelos ou desvio persistente dos pulsos em guitarristas, pianistas, violinistas e outros instrumentistas de cordas. Estes distúrbios devem ser diferenciados da distonia do músico.


Cirurgias


Desconecções Cerebrais Balanceadas

Um estudo em quinze músicos japoneses que não responderam às medidas clínicas e fisioterápicas, descritas acima, foram tratados com a talamotomia ventro-oral. Isto é, diminuta lesão em região integrativa de informação motora e sensitiva para movimentos finos, possível de ser identificada com as técnicas modernas de imagem cerebral (Figura acima). Eles apresentaram melhora significativa dos sintomas, particularmente entre músicos amadores. Apenas dois dos nove músicos profissionais retornaram para suas carreiras, embora nenhum tocasse instrumentos clássicos ocidentais.


A recuperação de um virtuoso acometido pela distonia do músico é complexa e requer uma equipe multidisciplinar. O retorno aos palcos requer um esforço hercúleo de disciplina, força psicológica e um intenso suporte de terapias ocupacionais, fisioterápicas e psicológicas (https://www.desallesegorgulho.com.br/post/distonia).


Integração Computador-Cérebro

As abordagens cirúrgicas em vias cerebrais têm evoluído imensamente, principalmente com o implante de marca-passos cerebrais totalmente computadorizados para modular a função das mais diversas regiões cerebrais. Estes tornam-se adjuntos do cérebro no intuito de corrigir disfunções e suprir deficiências. Sendo já usados nas mais diversas doenças cerebrais, como a epilepsia, depressão, mal de Parkinson, mal de Alzheimer, tremor essencial, transtorno obsessivo compulsivo, doenças metabólicas, como a anorexia nervosa e outras. Modulam sem interromper vias ou relays importantes no cérebro, o fazem de maneira progressiva e reversível, trabalhando na rede neuronal. Estes sistemas inteligentes permitem adequação da influência cerebral, ajustando as necessidades do paciente à medida que a doença progride ou regride. Pacientes adaptam-se facilmente à esses aparelhos miniaturizados e passiveis de ajustamentos por si mesmo.


A cirurgia é baseada em cálculos matemáticos intensos, usando imagens que demonstram as vias e núcleos cerebrais à serem abordados, bem como a vasculatura à ser evitada. Isto torna o risco de uma complicação cirúrgica ser inferior a 0,5%. Sendo uma prótese de uso permanente, hoje os marca-passos são recarregáveis e duram até 25 anos, sem necessidade de uma intervenção cirúrgica para troca de bateria.


É importante que o músico-paciente entenda que a cirurgia não é um milagre mas um marco em um caminho para que retorne ao seus extremos esforços à dedicação que o fez um grande músico. Após a cirurgia, a disciplina com a fisioterapia, o ajustamento psicológico que o novo estado de saúde pós-cirúrgico requer, a terapia ocupacional que devem continuar para que o virtuoso retorne ao seu auge na música.

Complementos à Cirurgia


· Fisioterapia

· Suporte Psicológico

· Terapia Ocupacional

· Medicações quando necessárias


A distonia do músico continua sendo um distúrbio do movimento com contrações involuntárias devastadoras, as quais quando não tratadas adequadamente podem encerrar a carreira de grandes virtuosos da música.

 

Antônio de Salles e Alessandra Gorgulho

NeuroSapiens®

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